A_representacao_da_memoria

A REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA EIDENTIDADE EM “O PIANO”,DE ANÍBAL MACHADO Que é agradável mas não é o correr dos rios Nem o murmúrio que as árvores fazem.
RESUMOO presente estudo tem por objetivo fazer uma leitura do conto “O piano”, deAníbal Machado, enfatizando as temáticas da memória e da identidade. Comosuportes teóricos, adotaram-se reflexões de Stuart Hall e Renato Ortiz, dentreoutros.
Palavras-chave: Aníbal Machado. Literatura brasileira. Memória. Identidade.
Piano.
ABSTRACTThis study aims at doing a critiques of the shortstory “O piano”, by AníbalMachado, which emphazises themes like memory and identity. As theoreticalbasis, Stuart Hall's and Renato Ortiz's reflections.
Keywords: Anibal Machado. Brazilian Literature. Memory. Identity. Piano.
A proposta deste trabalho é fazer uma leitura do conto O piano, de Aníbal Machado, ressaltando os temas da memória e da identidade. Ao refletirsobre o tema da identidade, sabe-se que esse adquire um nível decomplexidade bem maior do que se pensa a princípio; pois, quando umindivíduo se questiona a respeito de si mesmo e procura, intimamente, algoque o faz singular diante do outro, ele está tentando encontrar características 1Graduada em Letras (CES/JF), especialista em Estudos Literários (UFJF), mestranda do Curso de Mestradoem Letras do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, professora de Língua Portuguesa da rede pública próprias que lhe permitam reconhecer a sua identidade. Uma pessoa não éum átomo, ela faz parte de uma coletividade e vive dentro de uma situação deinter-relação pessoal e social.
Daí surge a reflexão de que não existe apenas a identidade pessoal que o homem busca a fim de se compreender melhor como ser, mas tambémuma identidade coletiva que se forma, tanto no âmbito das relações pessoaisquanto numa relação de pertencimento de um povo dentro de uma região,estado ou país. Todos esses aspectos se entrecruzam para formar o que sedenomina identidade.
A memória é um recurso interno do ser individual ou coletivo, que vem à tona para lhe mostrar a sua identidade. No túnel do tempo, revisitadopela memória, encontra-se toda a herança cultural do ser humano. Para oprocesso de construção de uma identidade, seja pessoal ou coletiva, amemória torna-se um recurso primordial, já que carrega o sentido depermanência, fazendo o homem não se sentir tão desenraizado. Este trabalhopretende explorar esses dois conceitos e aplicá-los à narrativa de O piano,dando ênfase à questão da memória como um processo indissociável daconstrução da identidade da família Oliveira, apresentada no conto.
A definição do termo identidade alude a relações de semelhanças entre um eu e um outro, formulada particularmente como o modo de vidapessoal e social de um indivíduo. Aproxima-se, assim, mais dos processos dereconhecimento do que de conhecimento, buscar uma identidade éreconhecer no outro semelhanças existentes entre os diversos grupos sociaisde uma comunidade. A partir daí, acredita-se que essa procura se sustentamais no âmbito das tradições, passando pelo ritmo contínuo das repetições dopassado histórico e cultural de um povo.
Ao pensar a identidade dessa forma, ela se torna mais ou menos estável, sem agregar elementos novos, os quais representam a diferença e aquebra no ritmo das repetições de tais tradições e/ou de fatos previamenteestabelecidos. A reflexão em torno da questão da identidade vem sendodiscutida amplamente não só na teoria social, mas também na teoria literária.
Segundo Hall (2003, p 7), em essência, o argumento para tais reflexões é oseguinte: as velhas identidades que por tanto tempo estabilizaram o mundo A representação da memória e identidade em “O piano”, de Aníbal Machado, p.83 - p.98 social estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeitounificado.
A partir desse pensamento, apreende-se que há uma crise de identidade, ou seja, uma parte do processo de mudança social e cultural quetorna a sociedade dividida em torno de certas questões, as quais passam porconceitos bastante complexos, tais como: o que vem a ser identidade? Estaria amemória ligada, intrinsecamente, ao processo de reconhecimento daidentidade? Ao analisar essas questões, entende-se que a identidade é a memória cristalizada no hoje, permitindo, dessa forma, a uma pessoa (indivíduo) oupovo (sociedade) ter consciência de seu pertencimento em um micro oumacrocosmo social.
A memória de uma pessoa ou de um povo vive submersa, pronta para emergir logo que seja ativada, mas por qual mecanismo se processa talativação? Poder-se-ia refletir sobre tal questionamento a partir da explicaçãoobjetiva de Hall (2003, p. 9) acerca do assunto: Um tipo de mudança estrutural está transformando as sociedadesmodernas no final do séc. XX. Isso está fragmentando as paisagensculturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça enacionalidade, que no passado nos tinham fornecido sólidaslocalizações como indivíduos sociais.
No caso brasileiro, particularmente, ainda constitui uma reflexão como uma espécie de subsolo estrutural, base de uma discussão maisespecífica em torno do que é memória e/ou identidade nacional. Sabendo-seque a identidade se define em relação a algo exterior a ela, pode-se questionartambém o porquê de se estar em busca de uma identidade que secontraponha a algo considerado estrangeiro (o outro).
Conforme Ortiz (1994, p. 8), “não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades construídas por diferentes grupos sociaisem diferentes momentos históricos”, isso confirma o que se pensa ser aconstrução do processo identitário do Brasil.
Quanto ao aspecto da memória, o primeiro teórico que abordou o assunto, constituindo uma nova denominação, chamada de memória coletiva foi Halbwachs. Ele que afirmou ser a memória uma estrutura construída em identidades de grupo, observando o seguinte: recordamos a nossa infância como membros da família, o nosso bairro como membros da comunidade local, a nossa vidaprofissional em função da comunidade da fábrica [.], e assim pordiante; que estas recordações são essencialmente memórias degrupo e que a memória individual só existe na medida em que esseindivíduo é um produto provavelmente único de determinadaintersecção de grupos (apud FENTRESS; WICKHAM, 1992, p 7).
Ao analisar a questão da memória somente por essa acepção, sabe-se que tal elaboração passa apenas pelo coletivo, deixando de dar ênfase aoindivíduo, um sujeito autômato que “está passivamente obediente à vontadecoletiva interiorizada” (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p. 7).
A leitura do conto O piano, de Aníbal Machado, realizar-se-á, buscando intersecções possíveis entre memória e identidade, no que dizrespeito às reações das personagens, quando, em um dado momento, se vêemobrigadas a se dispor do instrumento que contribui para a permanência daidentidade da família abordada no conto.
O piano é um instrumento de percussão, inventado por Bartolomeu Cristofori, de Florença – Itália. Após sua criação, demorou a ganharpopularidade, pois os primeiros modelos eram precários e bastante grandes.
No final do séc. XVIII, o cravo, outro instrumento bastante utilizado, caiu emdesuso e foi substituído pelo piano.
O objeto só alcançou o auge no século XIX, após ter passado por melhoramentos, inclusive na redução do tamanho, objetivando ocupar menosespaço. Com o aparecimento da classe média e a expansão do capitalismo, omóvel achou seu espaço nas residências burguesas. Desde então, tornou-sepopular e esteve presente na maioria das salas de visita das famílias abastadas.
Tanto que Gilberto Freyre (1981), em Casa-grande & senzala, esclarece que oviolão era o instrumento musical mais difundido no Brasil, no século XVIII,mas, com o processo mais acelerado de europeização, ele foi suplantado pelo piano-inglês, tocado pelas moças, exclusivamente, para os brancos residentesnas casas-grandes e sobrados.Devido a esse novo costume, muitos autores de A representação da memória e identidade em “O piano”, de Aníbal Machado, p.83 - p.98 nossa literatura, sobretudo os românticos, retrataram as heroínas de suashistórias tocando o instrumento, como se verifica em A escrava Isaura: [.] Achava-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobrefigura de moça. As linhas do perfil desenhavam-se distintamenteentre o ébano da caixa do piano, e as bastas madeixas ainda maisnegras do que ele. [.] A tez é como o marfim do teclado, [.](GUIMARÃES, 1988, p. 11).
O piano obteve grande representação na sociedade burguesa do século XIX, dando a quem o possuía bastante status, justamente por ser caro,belo e muito sofisticado. Somente quem tinha uma casa espaçosa e condiçõesfinanceiras poderia tê-lo. Daí ser um objeto da tradição burguesa. Atualmente,também é considerado um móvel de luxo e continua representando status.
Estruturalmente, a história de O piano começa no plano da diegese.
Ocorre um diálogo direto entre duas personagens, no início: Rosália e João deOliveira. Os dois falam a respeito da avaliação precária que certa pessoa fezsobre o piano pertencente à família. Neste início, já se tem uma idéia a respeitodo conflito que se estabelecerá dali para a frente. O narrador impõe um ritmoacelerado à história. As personagens são apresentadas em seqüência. Não lhesão atribuídas características físicas, nem psicológicas. As descrições sempre sereportam ao velho instrumento, demonstrando, com isso, que a família temgrande apreço por ele, como se observa: -Rosália! Gritava João de Oliveira. Toquei para fora o homem! [.] Veio dizer que não valia nem quinhentos cruzeiros. [.] [.] Rosália e Sara desceram assustadas. E a família acercou-se com respeito do velho móvel como a querer consolá-lo doressentimento deixado pela avaliação mesquinha.2 Essa importância dada ao piano faz com que o leitor comece a se 2MACHADO, Aníbal. O piano. In: XAVIER, Therezinha Mucci (Org.). O melhor do conto brasileiro: Minas Gerais. Joinville: Sucesso Pocket, 2002. p. 73-96.
perguntar sobre o que representa esse objeto no espaço da casa dos Oliveira.
O narrador é onisciente neutro, essa terminologia é relacionada a um [.] história parece contar-se a si própria, prescindindo da figura donarrador. Este oculto, pressuposto, confundindo com o que WaineBooth chama de “autor implícito”, é dotado do poder daonipresença: ele sabe o que se passa no céu e na terra, no presentee no passado, no íntimo de cada personagem. Tal perspectiva échamada por Jean Pouillon de visão por detrás (D'ONÓFRIO,2006, p. 60).
Pode-se observar o narrador onisciente neutro nesta passagem: - Quanto pede por ele? [.][.] Quinze mil cruzeiros, respondeu com timidez.
E olhou para todos, a ver o efeito. Ninguém riu, [.] Mas tinha-se asensação de hilaridade geral.
Foram-se preparando os pretendentes para sair. [.] Tinha ditoalguma monstruosidade? Só a velha fora delicada: disse que iapensar. Mas por que aquele ar piedoso que deixava transparecer oseu verdadeiro juízo sobre o piano? Perguntava a si mesmo Oliveira(MACHADO, 2002, p. 76).
Quanto à análise do tempo nesta narrativa, pode-se identificar um O tempo psicológico não é um tempo absoluto, mensurável atravésde padrões fixos. É o tempo interior à personagem e a ela relativo,porque é o tempo da percepção da realidade, da duração de umdado acontecimento no espírito da personagem3.
Esse tempo interior aparece com as reflexões feitas por João de Oliveira quando pensa no que significa ou significou o piano para a família.
D`ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, A representação da memória e identidade em “O piano”, de Aníbal Machado, p.83 - p.98 Surge também pelos pensamentos de Sarita quando sonha em ter o espaço do piano, transformado em quarto para ela e o futuro marido, como selê no fragmento a seguir: Toda vez que o olhar de Sarita pousava sobre o piano, transformava-o em cama de casal em que ela se revia abraçada aoseu tenente de artilharia. [.] Rosália exultou com a idéia. Joãoencaminhou-se depois para o velho móvel, como a consultá-losobre o que viera de fazer. – “Minha consciência está tranqüila”,pensou. “Tu não serás rejeitado, ficarás na família, no mesmosangue. As filhas de minhas filhas te respeitarão, ainda tocarás paraelas. Sei que não ficarás constrangido na casa do Messias,continuação da nossa”4.
Aníbal Machado não constrói o tempo cronológico com dados muito precisos. Não há menções a datas do ano e dias do mês. O que se tem sãoreferências à passagem do tempo dentro da história, por exemplo, em: Três dias depois o velho piano amanhecera engalanado de flores [.] No dia seguinte, mal chegara do trabalho, João de Oliveira foi [.] – Amanhã é sábado, pensou Oliveira,[.] Mas e aquele indivíduo que apareceu na quarta-feira, e lhe fez A idéia da época em que se passa a história é construída pelo leitor, à medida que vai tendo conhecimento dos fatos. Com os elementos datemporalidade, é possível compreender que a história de O piano se passaentre os anos 40 e 50 do séc. XX, período em que Getúlio Vargas subiu aopoder, ficando conhecido como a era Vargas e que compreende a ditadura doEstado Novo, de 1937 a 1945. Naquela época, explodia também a SegundaGuerra Mundial.
4D`ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática,2006. v. 1, p. 80-815 MACHADO, Aníbal. O piano. In: XAVIER, Therezinha Mucci (Org.). O melhor do conto brasileiro: Minas Gerais. Joinville: Sucesso Pocket, 2002. p. 74, 77, 79.
O narrador refere-se, sutilmente, à situação precária da sociedade, como por exemplo, à falta de gasolina, ao toque de recolher, à vigilânciaconstante da costa brasileira e à falta de liberdade dos cidadãos, a que João deOliveira se refere. Com esses dados, o leitor consegue situar o tempo danarrativa, como se lê no fragmento: [.] - Vocês compreendem. com essa falta de gasolina, não é? [.]A procissão parou por ordem de alguém. Motociclistas da políciacercaram o velho móvel. [.] Exigiram-lhe os documentos. Foi a casabuscá-los. Achou que eram naturais as exigências da polícia, devidoao estado de guerra: [.]Anoiteceu rapidamente. Um guarda observou que depois dasdezoito horas não era permitido. Só no dia seguinte. [.]- Que vida Rosália, [.] Que vida! Não se tem o direito nem de atirarfora o que é nosso6.
Em relação ao espaço/ambiente da história, pode-se dizer que é no subúrbio do Rio de Janeiro, capital brasileira, na época. O bairro está próximoà praia, já que o piano é levado ao Atlântico por João de Oliveira e pelosmeninos da praia do Pinto e Latolândia, população pobre que vive emcasebres.
A casa dos Oliveira é descrita como modesta e apertada. Diversas vezes Rosália a compara a uma caixa de fósforos ou a uma casca de nozes.
A falta de espaço e dinheiro obriga os Oliveira a vender o piano para custear o enxoval de Sarita. Nesse ponto, desencadeia-se todo o conflitovivido pelas personagens. O espaço, portanto carrega uma importânciadramática dentro do conto, pois é justamente pela sua falta que precisam sedesfazer do piano.
É importante observar que o narrador, discretamente, apresenta algumas reflexões sobre o novo tempo, ou seja, os tempos modernos. Ele,constantemente, fala da falta de espaço quando manifesta a vontade de váriaspessoas em querer ficar com o piano, mas a falta de uma casa maior as impede.
Sempre lembra, nos diálogos travados pelas personagens, que os tempos estãomudados, que uma outra era se apresenta, por isso, o piano não cabe ali. Omóvel ocupa espaço, está desvalorizado devido ao uso da vitrola, objeto maismoderno. O instrumento musical representa o passado, a tradição e as 6MACHADO, Aníbal. O piano. In: XAVIER, Therezinha Mucci (Org.). O melhor do conto brasileiro: Minas Gerais. Joinville: Sucesso Pocket, 2002, p. 88, 89, 93 A representação da memória e identidade em “O piano”, de Aníbal Machado, p.83 - p.98 memórias de um tempo que ficou para trás. Na nova época, tudo é destruídoem função da modernidade e do progresso.
Com essa abordagem, percebe-se o tempo do autor. Ele está vivenciando o problema da modernidade e o enxerga de maneira bem crítica,vê, em seu tempo, muitos casarões serem destruídos para depois reergueremoutros mais modernos. O piano, instrumento de grande tradição na música, ésubstituído por um outro objeto menos elegante, como, por exemplo, a vitrola.
Aníbal Machado, ao tentar retratar o Rio de Janeiro do início do século XX, incorporando alguns símbolos do progresso e da civilizaçãomoderna, oferece uma visão crítica, uma tomada de consciência sobre a perdadas tradições, provocando naqueles que a presenciam um misto de ansiedade,prazer e descontentamento, por isso, as temáticas da identidade e da memóriaestão tão evidentes no conto e aparecem nos conflitos vivenciados pelosOliveira quando tentam se desfazer do antigo móvel.
O piano é um objeto que se apresenta com características bastante humanizadas e suscita em João de Oliveira rememorações, lembranças ereflexões afetivas de seus antepassados. Para ele, abrir mão do instrumento édeixar que as tradições da família se percam. O velho móvel possibilita acompreensão do passado que se reapresenta no hoje, que não se repete, masse atualiza e se presentifica, como se observa a seguir: Como que gosta de ver pessoa amiga perder o trem só pelo prazer de gozar-lhe mais tempo a companhia, assim estava João deOliveira em relação ao seu velho móvel. Sentava-se perto dele,gozava-lhe os últimos momentos, apreciava-lhe a dignidade doaspecto, confidenciava-lhe coisas. Três gerações tocaram ali. Aquanta gente fez sonhar, fez dançar! Tudo passava. O piano ficava.
O único objeto que falava dos antepassados. Meio eterno. Ele e ooratório (MACHADO, 2002, p. 80).
Opostamente à tentativa de João, de preservar a identidade e a memória da família e, não sucumbir ao esquecimento, que a venda do pianolhe impõe, está Sarita, sua filha, que, mesmo entendendo as razões do pai,deseja se desfazer do móvel, para encerrar uma etapa na vida e iniciar outra.
Ou seja, ela tem os olhos voltados para o futuro, para uma vida nova com ofuturo esposo e o piano representa um dos impedimentos. Pode-se perceberesse contraste, no trecho a seguir: -Vem, Sarita. Aquele trecho de Chopin, vê se te recordas.
- Ah, papai, é impossível; para se tocar nele é uma desgraça. Não dámais nada.
-Não fales assim, sussurrou Rosália. Não vês como anda teu pai.
Toda vez que o olhar de Sarita pousava sobre o piano,transformava-o em cama de casal em que ela se revia abraçada aoseu tenente de artilharia (MACHADO, 2002, p. 80).
Verifica-se, portanto, no embate entre pai e filha duas forças que se opõem. Sarita aspira ao novo, à quebra das tradições, tem um olhar voraz paraa novidade, como o gosto pela vitrola e pela vida que anseia viver, nãopermitindo ao piano que faça parte deste momento. João, ao contrário, nãoquer submeter o antigo móvel ao esquecimento, deseja preservá-lo nem queseja para doá-lo aos primos que moram na Tijuca, bairro do Rio de Janeiro: - Não vou vendê-lo mais, gritou João decidido. Esses canalhasquerem é explorar. Prefiro dá-lo de graça, mas a alguém que opreserve, que saiba o que ele representa.
- Escuta Rosália; liga para os nossos parentes na Tijuca. [.]Rosália exultou com a idéia. João encaminhou-se depois para ovelho móvel, como a consultá-lo sobre o que viera de fazer. –“Minha consciência está tranqüila”, pensou. “Tu não serásrejeitado, ficarás na família, no mesmo sangue. As filhas de minhasfilhas te respeitarão, ainda tocarás para elas. Sei que não ficarásconstrangido na casa do Messias, continuação da nossa”7.
Nesse fragmento, o leitor tem a sensação de que João se dirige a uma pessoa idosa, um velho que pode se sentir rejeitado e deixado de lado pelaprópria família. A partir daí, sente-se culpado por ter que lhe dar outro destino,que não o da sua casa. Para tentar se redimir da culpa, resolve deixar o “velho”com um parente próximo.
Os parentes também não vêm buscar o instrumento, apresentam algumas desculpas e agradecem a gentileza de João. Novamente, a família seencontra numa situação conflituosa. João não sabe o que fazer, sente-seangustiado e perturbado. Não consegue acreditar que ninguém valorize opiano. Rosália tenta consolar o marido e diz “ - Que se há de fazer, João! Todas MACHADO, Aníbal. O piano. In: XAVIER, Therezinha Mucci (Org.). O melhor do conto brasileiro: Minas Gerais. Joinville: Sucesso Pocket, 2002. p. 81.
A representação da memória e identidade em “O piano”, de Aníbal Machado, p.83 - p.98 as coisas acabam assim.”8. Sarita se encontra cada vez mais revoltada e desejaardentemente que o piano seja posto dali para fora.” - Eu quero que ele saiaquanto antes, mamãe. Faltam poucos dias [.] Não vejo nada para ocasamento. Só esse piano enjoado para atrapalhar a minha vida, esse pianoque ninguém quer [.]9 Depois de reiteradas tentativas de venda e a negação dos parentes em ficar com o antigo móvel, João tem a idéia de jogá-lo ao mar. Todos, inclusiveSarita, ficam confusos com a idéia, mas acabam concordando, o casamentoestá próximo e o impedimento maior ainda se encontra dentro de casa.
João de Oliveira convida alguns homens para ajudá-lo com o transporte do piano até ao mar. Eles se comovem e são contra tal atitude, vãoembora falando que era para o “patrão” fazer um anúncio, pois o piano aindaestava perfeito. João reage com ironia. Um deles, no entanto, o “pretomaltrapilho”, pede para ficar com o piano para si: Estava, ali, à disposição de quem quisesse. Saiu olhando para o móvel, hipnotizado pela idéia de poder possuí-lo, só para ser donode alguma coisa – e logo de um objeto de luxo – ele que não eradono de coisa alguma, senão de sua vida10.
No discurso do “preto maltrapilho”, percebe-se uma relação oposta à da família Oliveira, essa personagem é livre, parece não ter elo com nenhumatradição familiar e muito menos com objetos que o façam recordar suasheranças familiares, entretanto o piano não fica com ele, não lhe é permitidotê-lo, já que não tinha casa e nem sabia tocar. Esse homem talvez não pertençaa um grupo social que preze a continuidade da tradição.
Depois dessa tentativa frustrada de levar o piano, João consegue que alguns meninos pobres da praia do Pinto e Latolândia o ajudem a carregá-loem direção ao mar. Pede à mulher e à filha que retirem algumas peças paraserem aproveitadas, como os castiçais de bronze, os pedais, os ornatos demetais e, em seguida, a tampa de carvalho. O piano fica transfigurado. Com aretirada de algumas peças, a família fica com alguma herança do velho eamado móvel. Começa, então, o “funeral” do piano: 8MACHADO, Aníbal. O piano. In: XAVIER, Therezinha Mucci (Org.). O melhor do conto brasileiro:Minas Gerais. Joinville: Sucesso Pocket, 2002. p. 829Ibid., p. 82.
Eram quatro e vinte da tarde quando saiu o saimento. [.]Ao chegar a procissão à esquina da rua transversal, indagaram os - Para onde?Todos queriam segurar o esquife ao mesmo tempo. E o piano - Para onde? Perguntava-se de novo.
-Para o mar! gritava João de Oliveira num assomo de comandante11 Durante o percurso, uma família de exilados poloneses se prontifica a ficar com o velho piano e também não pode, não possui espaço na suaresidência.
Neste momento, o leitor indaga: Por que ninguém fica com o piano? Por que não ocorre a transferência de donos? Algumas inferências surgem ealgumas possibilidades afloram com o questionamento e pensa-se naimpossibilidade de transferir o piano a outrem, talvez o objeto carregue acontinuidade das tradições da família Oliveira. Daí, não ser possível repassá-lo,ainda mais aos estrangeiros despatriados que não compartilham dos mesmossentimentos em relação ao piano.
Após esse episódio com os poloneses, João segue seu percurso. É interpelado pela polícia que vai averiguar e buscar explicações sobre aqueleinusitado cortejo. Exigem os documentos, João vai a casa buscá-los e seaborrece por ter que dar tantas explicações; até achou que era natural aexigência dos policiais devido ao estado de guerra, mas ninguém poderiaimpedi-lo de fazer o que bem entendesse com o “seu piano”. Abaixo severifica mais uma vez a humanização deste objeto que traz consigo uma cargade lembranças tanto familiar quanto histórica: Estava fazendo uso de um direito: jogar fora o que bem entendesse.
E pondo a mão sobre o piano como quem acaricia a testa de umamigo morto, comoveu-se, começou a discorrer sobre a vida dele:- É uma peça antiga, das mais antigas que existem. Tinha sido deseus avós, gente que prestara serviços ao Império.
Ficou a contemplá-lo.
- Bom piano, podem acreditar. Músicos famosos tocaram nele.
Dizem que para Chopin não havia igual. Mas que vale isso? MACHADO, Aníbal. O piano. In: XAVIER, Therezinha Mucci (Org.). O melhor do conto brasileiro: Minas Gerais. Joinville: Sucesso Pocket, 2002. p. 86 A representação da memória e identidade em “O piano”, de Aníbal Machado, p.83 - p.98 Ninguém o aprecia mais. Os tempos estão mudados (MACHADO,2002, p. 88- 89, [grifo da autora]).
Aqui, pode-se refletir sobre o que Rodrigues (1981, p. 48), crítico e historiador, afirma sobre a memória. Ela “é um depósito de dados,naturalmente estática, pois configura um princípio de conservação,[.]”.
Em relação à identidade, o crítico cultural Kobena Mercer, afirma que “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quandoalgo que se supõe fixo é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”(MERCER apud HALL, 2003, p. 9).
João de Oliveira tenta manter presente a memória da família, conservando o piano. Talvez por isso se sinta tão abalado por ter que sedesfazer dele, sabe que haverá para frente apenas incertezas e dúvidas e,definitivamente, não tem como deixar essa lembrança viva dentro de casa.
Com a chegada da noite, o “funeral” é interrompido, porque não podiam continuar devido ao toque de recolher. O piano fica na rua. João vaipara casa. Dorme e, de madrugada, sonha com todos os antepassados ao redordo velho instrumento e mais uma vez se sente culpado: João de Oliveira adormeceu de novo num sono agitado. Despertou logo em seguida. E começou a contar à mulher que ouvira o própriopiano repetir tudo o que havia tocado nele. Mas com muito maisalma![.] - Uma porção de mãos, Rosália. Mãos diferentes, de diversas mulheres. As de minha avó, as de minha mãe; as tuas; as de minhastias, as de Sara. Mais de vinte mãos, mais de cem dedos brancosferindo o teclado. Nunca ouvi músicas tão bonitas. Uma coisasublime, Rosália. Certos acordes as mãos mortas tiravam melhorque as vivas. Muitas moças de outras gerações estavam atrás, aouvir. Perto, nossos parentes se namoravam, pediam-se emcasamento. Não sei por que, todos olhavam para mim com certodesprezo (MACHADO, 2002, p. 90).
A identidade da família se desperta com os sonhos de João, há o reviver do que se perdeu das histórias e tradições. O piano tem o poder detornar presente os que já partiram, ele é uma espécie de registro, síntese detudo que foi bom na família, por isso, Oliveira sente tanto remorso, pensa queestá dando as costas ao seu passado e a todos os seus entes queridos. Com muito lirismo, Aníbal Machado constrói esse momento tão maravilhoso do conto e faz o leitor refletir sobre esta tentativa desesperada de João em jogar opiano ao mar, conforme o Dicionário de símbolos, o mar representa a dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retornaa ele. [.] Águas em movimento, o mar simboliza o estadotransitório entre as possibilidades ainda informes as realidadesconfiguradas, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza,de dúvida, de indecisão, e que se pode concluir bem ou mal. Vemdaí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem damorte. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2003, p. 592) Ao jogar ao piano mar, pode-se pensar numa tentativa de conservação e/ou ruptura com o passado. No mar, o piano remete à idéia deque, estando nas profundezas, a memória da família fica resguardada, ouentão, estará livre e a família não mais viverá olhando para trás, mas sedirecionará para o futuro. Dessa forma, seria interessante acrescentar areflexão que Menezes (1984, p. 185) faz sobre memória e identidade: Exilar a memória no passado é deixar de entendê-la como força viva do presente. Sem memória, não há presente humano, nemtampouco futuro. Em outras palavras: a memória gira em torno deum dado básico do fenômeno humano, a mudança. Se não houvermemória, a mudança será sempre fator de alienação edesagregação, pois inexistiria uma plataforma de referência, e cadaato seria uma reação mecânica, uma resposta nova e solitária a cadamomento, um mergulho do passado esvaziado para o vazio dofuturo. É a memória que funciona como instrumento biológico-cultural de identidade, conservação, desenvolvimento, que tornalegível o fluxo dos acontecimentos.
É possível, então, refletir que o mar apresenta duas possibilidades de leitura: conservação e mudança. O piano, nas profundezas do oceano, decerta forma, continua preservado e, conseqüentemente, a memória da famíliatambém. A idéia de mudança surge quando João pensa no que acontecerá aopiano, longe da sua casa. A personagem acredita que o piano se libertou dealgumas amarras e estará livre para passar “por coisas estranhas. Destroços de navios. submarinos. peixes” (MACHADO, 2002, p. 93). Daí, compreende-se que o novo pode ser vivido e revivido pelo antigo. O mar assume, portanto a A representação da memória e identidade em “O piano”, de Aníbal Machado, p.83 - p.98 simbologia da memória e da identidade, ao mesmo tempo em que preserva,oferece também novas possibilidades.
Para finalizar esta leitura, é importante ressaltar a figura do judeu que aparece diversas vezes na história, sem emitir nenhuma opinião sobre o piano,estando sempre em silêncio. Depois de todos os conflitos vivenciados pelosOliveira, ele retorna à casa de João e faz uma oferta pelo móvel. Possivelmente,essa personagem faz a proposta, visando a encontrar, no velho piano, umpouco de história e tradição, sabe-se que, historicamente, ele é um“despatriado”, sem território, sendo muitas vezes chamado de “judeuerrante”, o que não fixa raízes, ou se se fixa, é bem longe da terra natal.
É intrigante pensar nas personagens que, além de João, desejam ficar com o piano. Todas elas se encontram dentro de uma realidade fragmentada,isto é, os poloneses e o judeu estão longe da terra natal e o piano pode ser umponto de contato com a identidade que se perdeu ou está distante; o “pretomaltrapilho”, se não tem casa, muito menos família e o piano, para ele,representaria ter algo de concreto para si.
A caracterização do piano sempre passa pelo discurso do velho, da poeira, da ruína e da desvalorização. Aníbal Machado nos coloca frente afrente com o drama do indivíduo fragmentado, vítima de uma culturadecadente. O piano desce do pedestal da cultura burguesa, ele é corroído pelotempo e substituído pelos objetos modernos que não ocupam grandes espaçosdentro da realidade social da vida moderna.
Aníbal Machado, no conto O piano, descreve o espetáculo da demolição e da fragmentação de um piano, objeto belo e sublime, tentandoproporcionar-lhe certa dignidade e um “funeral” mais digno.
Verifica-se, na leitura dessa narrativa, um choque entre o passado e o presente, entre o velho e o novo, demonstrando-se, com as atitudes de João deOliveira, em jogar o piano ao mar, uma necessidade de preservar a memória ea identidade da família, por isso, o piano não é vendido, ninguém compra amemória e a identidade de uma pessoa ou de um povo, muito pelo contrário,ela é construída na interação entre o passado e o presente, visando àconstrução do futuro.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos,sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 10.ed. Rio deJaneiro: Jose Olympio, 1996.
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Source: http://www.cesjf.br/revistas/cesrevista/edicoes/2007/a_representacao_da_memoria.pdf

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