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FABIANA MATIE SATO
Novo conceito de sentença e aplicação do princípio da fungibilidade ESCOLA DA MAGISTRATURA
PARANÁ – 2006
Novo conceito de sentença e aplicação do princípio da fungibilidade
Por força da alteração do disposto no art. 162, §1º do CPC (Lei nº 11.232, de 22.12.2005), o critério do efeito foi substituído pelo conteúdo. O conceito de sentença, antes da reforma, poderia ser traduzida da seguinte forma: “as sentenças são os pronunciamentos judiciais que têm como principal efeito o de pôr fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição”1. Vigora no sistema recursal, o princípio da correspondência: toda decisão interlocutória é agravável (CPC, art. 522), e toda sentença é apelável (CPC, art. 513). Excepcionalmente cabia agravo contra despacho, apesar da ressalva colocada pelo art. 504 do CPC (“Dos despachos de mero expediente não cabe recurso”, sem a alteração da Lei nº 11.276, de 07.02.2006), nos casos em que o ato se mostrava teratológico. O princípio da correspondência ainda vigora, mas com critério norteador diferente. Abandonou-se o critério efeito e adotou-se o conteúdo (situações previstas nos arts. 267 e 269 do CPC, nos termos do art. 162, §1º do CPC). Somou-se ainda a irrecorribilidade dos despachos, por força da alteração do art. 504 (Lei nº 11.276, de 07.02.2006. 1 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, O Novo Regime do Agravo, p.72. A teratologia do comando propulsor reside na manifesta ilegalidade, ora porque extemporâneo o despacho, ora porque dado em total descompasso com a marcha processual, sendo capaz portanto de causar gravame à parte. Ex: pedido de tutela antecipada, em que é urgentíssima a apreciação em razão da iminente ocorrência de dano irreparável, e o juiz, ao invés de apreciar, determina a remessa dos autos ao Ministério Público que sequer atua no feito: “Ao MP”. Este despacho embora irrecorrível, por força do art. 504 do CPC não retira do prejudicado a possibilidade de impetração de Mas, logicamente, este mesmo despacho (“Ao Ministério Público”) dado em consonância com a marcha processual é irrecorrível, por expressa previsão legal Um despacho, embora irrecorrível, dependendo do grau de lesão causado, pode ser atacado por mandado de segurança, haja vista que a toda lesão de direito deve haver o correspondente remédio processual. O conceito de LUIZ FUX2 sobre decisão interlocutória deixava nítida a adoção do critério do efeito como elemento diferenciador entre sentença e decisão interlocutória: “ato do juiz no curso do procedimento que malgrado decisório não impõe o término do processo. A característica da decisão interlocutória é a de versar sobre questão cuja análise não implica a extinção do procedimento em primeiro grau de jurisdição, posto que, em alguns casos, em segundo grau, se não impugnada pode 2 Curso de Direito Processual Civil, p. 891 extinguir o processo, como, v.g., a decisão que nega seguimento ao recurso A simplicidade do sistema recursal refletia-se na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil de 1973, do eminente professor Alfredo Buzaid, Ministro da Justiça, à época: “33. Diversamente do Código vigente, o projeto simplifica o sistema de recursos. Concede apelação só de sentença; de todas as decisões interlocutórias, agravo de instrumento. Esta solução atende plenamente aos princípios fundamentais do Código, sem sacrificar o andamento da causa e sem retardar injustificadamente a resolução de questões incidentes, muitas das quais são de importância decisiva para a apreciação do mérito. O critério que distingue os dois recursos é simples. Se o juiz põe termo ao processo, cabe apelação. Não importa indagar se decidiu ou não o mérito. A condição do recurso é que tenha havido julgamento final no processo. Cabe agravo de instrumento de toda a decisão, proferida no curso do processo, pela qual o juiz resolve A regra, em princípio, simples, evitaria enganos na interposição do recurso correto, mas comprovou-se no dia-a-dia que a nova sistemática recursal embora menos minuciosa que a do Código de 39, ainda trazia uma zona de incerteza aos Em razão da alteração de critério (do efeito para o conteúdo) de sentença, pode eventualmente existir dúvida quanto ao cabimento do agravoa justificar a aplicação do princípio da fungibilidade, que significa admitir um recurso por outro
quando existir dúvida objetiva contra determinada decisão judicial. O tribunal ou o juiz competente para recebê-lo, caso entenda não ser esse o recurso correto, processará e conhecerá como se o outro, entendido como correto, tivesse sido interposto. Adapta-se o “nomem iuris” e o procedimento. (RTJ 90/11063, RTJ, 89/2104)
O Código de 1973 não trouxe regra expressa sobre a aplicação do princípio da fungibilidade, como fez o Código de 1939, art. 8105, ou o Código de Processo Penal, art. 5796, talvez porque se apostasse na dispensabilidade da fungibilidade ante a simplificação do sistema de recurso, como se nota no item 33 da Exposição de Motivos transcrita anteriormente. Friso que o silêncio do legislador não pode ser interpretado como proibição, ainda mais porque o norte a ser seguido é o aproveitamento dos recursos em situações duvidosas geradas pela própria codificação. 3 Ementa: "O princípio da fungibilidade subsiste no sistema do Código de Processo de 1973, a
despeito de não haver este reproduzido norma semelhante a do art. 810 do estatuto processual de
1939. Recurso extraordinário conhecido e provido. “É irrelevante, para mim, que o vigente Código
de Processo Civil não haja reproduzido norma semelhante a do art. 810 do estatuto anterior, pois a
fungibilidade dos recursos constitui desdobramento de princípio científico superior, que é da
conversão dos atos processuais. Nada obsta, portanto, a que, não havendo má-fé nem erro
grosseiro, e estando satisfeitos os demais requisitos formais, inclusive o relativo ao prazo, seja
conhecido como sendo o adequado, o recurso inadequado porventura interposto pela parte.”
(Recurso Extraordinário nº 91.157-SP, 1ª Turma, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, j. 19.06.79)
4 Ementa: "Princípio da fungibilidade dos recursos. Embora não previsto expressamente na lei
processual em vigor, é autorizado pelo sistema dessa Codificação. “.não se pode olvidar que o
vigente Estatuto Processual, em vários casos, dentre os quais a decisão proferida em impugnação
ao valor da causa se inclui, dá ensejo a dúvidas sobre o recurso cabível. Nessas hipóteses,
interposto tempestivamente o recurso errôneo, seria aplicar-se o princípio da fungibilidade dos
recursos, que embora não seja adotado expressamente pelo CPC em vigor, é inerente ao seu
sistema. (CPC, art. 250)".

5 CPC/39, art. 810: salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos serem enviados à Câmara ou Turma a que competir o julgamento. 6 CPP, art. 579: Salvo a hipótese de má-fé, a parte não pode ser prejudicada pela interposição de um recurso por outro. Parágrafo único: Se o juiz, desde logo, reconhecer a impropriedade do recuso interposto pela parte, mandará processá-lo de acordo com o rito do recurso cabível. Em momento algum uma discussão estritamente processual pode colocar a perder o direito da parte. Sobrepor uma tecnicidade sobre o direito material é desviar-se da finalidade precípua do Direito Processual Cicil, que é viabilizar o direito material da parte, por meio de uma prestação jurisdicional mais que célere, tempestiva; mais que jurídica, justa. Clama-se pela sensibilidade dos operadores para que não se deixem perder no emaranhado de institutos e discussões acadêmicas. Após três décadas de vigência do Código de Processo Civil, pode soar estranho que ainda exista dúvida que a doutrina ou a jurisprudência não tenha solucionado, mas em razão das sucessivas alterações no Código, iniciadas na década de 90 e novamente acionadas em 2006, por força da EC 45/2004, ao impor como direito fundamental (CF, art. 5ª, LXXVIII), a celeridade na tramitação do processo, geraram-se acaloradas discussões na doutrina e na jurisprudência acerca das repercussões recursais por força das alterações operadas. Ação de prestação de contas em que o juiz profere uma sentença obrigando o réu a prestar contas em 48 horas (CPC, art. 915, §2º) é apelável, assim como a sentença que declara o saldo credor (CPC, art. 918). Se antes discutia-se sobre a possibilidade de cabimento de agravo contra a decisão que encerrava a primeira fase, hoje esta discussão não existe. A doutrina e a jurisprudência indicam a mesma solução: apelação. A interposição de agravo configura erro grosseiro. O mesmo não se pode dizer quanto à concessão de tutela antecipada na sentença. Agravo ou apelação? Trata-se de uma discussão recente, reacendida pela Lei nº 10.352/01 que deixou claro no inciso VII do art. 520 que era possível a concessão de tutela antecipada no corpo da sentença. Com estes dois exemplos anteriores ficou claro que, mesmo com a vigência do Código há 30 anos, a importância do princípio da fungibilidade se mantém, motivo pelo qual é necessária a uma claro conceito de dúvida objetiva para a aplicação A dúvida objetiva é aquela demonstrável através de citações doutrinárias e jurisprudenciais em ambos os sentidos, acrescidos de argumentos convincentes acerca das opções existentes. Tanto partes como julgadores têm conhecimento desta divergência, ou, ao menos, acesso. Já o erro grosseiro é uma escolha equivocada que demonstra desconhecimento jurídico ou desatenção às regras básicas. O princípio da fungibilidade abarca somente a dúvida objetiva e não o erro THEOTONIO NEGRÃO7 anota que “a jurisprudência é no sentido de ser agravável a decisão que indefere pedido de assistência” . “Da decisão que indefere pedido de assistência cabe agravo (TFR – 4ª Turma, AC 56.280-SP, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 11.6.86, v.u., DJU 7.8.86, p. 13.347, “apud” Bol. AASP 1.448/228, em. 13: JTA 104/395) bem como da que defere (STJ – 3ª Turma, Resp 46.102-2-MG, rel. Min. Menezes Direito, j. 20.8.96, deram provimento, v.u., DJU 30.9.96, p. 36.637)”. Também 7 Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, art. 522, nota 2. neste sentido: Resp nº 44796/SP, Min. Rel. ALDIR PASSARINHO JÚNIOR, j. 23.11.99. Por outro lado, em pesquisa, observamos que a jurisprudência predominante do Superior Tribunal de Justiça é a de que só caberá agravo se a decisão for proferida nos autos principais, mas será de apelação, conforme art. 17 da Lei nº 1.060/50, quando em autos apartados. Vide Resp nº 256281/AM8, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, j. 22.05.01; Resp nº 156791/DF9, Rel. Min. CESAR ASFOR ROCHA, j. 04.09.01; Resp nº 195084/PA10, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, j. 16.03.99; Resp nº 166038/TO11, Rel Min. SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, j. 18.06.98, Resp nº142946/SP, Rel. Min. EDUARDO RIBEIRO, j. 15.10.98; Resp nº 174298/RJ, Rel. Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, j. 06.10.98; AGA nº 385184/SP, Min. Rel. ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, j. 06.09.01; Resp nº 175549/SP, Min. Rel. FRANCIULLI NETO, j. 05.09.00; Resp nº 152465/SP, Min. Rel. HAMILTON 8 “Havendo impugnação ao deferimento da assistência judiciária, processada em autos apartados, contra a sentença que a acolhe cabe o recurso de apelação. Não há, portanto, plausibilidade para admitir-se, no caso, a fungibilidade recursal. (Resp nº 256281/AM, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO) 9 ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. INDEFERIMENTO NOS AUTOS PRINCIPAIS DO BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA. RECURSO CABÍVEL. PRECEDENTES. “O agravo de instrumento é o recurso cabível contra a decisão que indefere o pedido de assistência judiciária nos autos principais.” 10 PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA.DEFERIMENTO. AUTOS PRINCIPAIS. RECURSO CABÍVEL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. “1. A concessão ou não, de plano, de pedido de assistência judiciária, nos autos principais, desafia a interposição de agravo de instrumento e não apelação. Violação ao art. 17, da Lei nº 1.060/50 não acolhida. Precedentes.” 11 PROCESSUAL CIVIL. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. INDEFERIMENTO DE PLANO NOS PRÓPRIOS AUTOS. LEI Nº 1.060/50, ART. 5º. CABIMENTO DE AGRAVO. FUNGIBILIDADE. APELAÇÃO COMO AGRAVO. POSSIBILIDADE. RISTJ, ART. 257. RECURSO PROVIDO. I - Nos termos da jurisprudência desta Corte, em se tratando de decisão que indefere de plano o pedido de assistência judiciária, nos próprios autos da ação principal, ou seja, na hipótese do art. 5º da Lei nº 1.060/50, é cabível o recurso de agravo. II - O princípio da fungibilidade recursal tem aplicação desde que haja dúvida objetiva na doutrina e na jurisprudência a respeito do cabimento do recurso e que esse tenha sido interposto no prazo do apelo próprio. (Resp nº 166038/TO, Rel Min. SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA) TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER12 enumera alguns exemplos típicos que podem gerar dúvidas: decisão que indefere reconvenção, pronunciamento que indefere liminarmente a declaratória incidental, a decisão que confere adjudicação de imóvel e a que defere remição ante o art. 558 que fala em “decisão”. Por outro lado afirmava LUIZ FUX13 que a decisão que repele “in limine” reconvenção e a que excluiu co-réu eram agraváveis. Agora com a alteração do conceito de sentença, o recurso correto passou a ser a apelação. O que para alguns gera dúvida, para outros gera a certeza de que dúvida não pode haver quanto ao cabimento de determinado recurso. Dúvida para uns, falso problema para outros. Erro escusável para uns14, erro grosseiro para outros15. Do que se conclui que o terreno da dúvida objetiva (ou erro escusável) está justamente na divergência séria tanto na doutrina como na jurisprudência. Em suma, havendo dúvida objetiva fundada na doutrina autorizada e na jurisprudência, cabível a aplicação do princípio da fungibilidade. Existindo ainda hoje esta regra, remanesce uma zona de incerteza, relativa ao prazo. O recurso intempestivo porque interposto fora do prazo considerado correto deve ser beneficiado com a fungibilidade dos recursos? A troca integral de um 12 O Novo Regime do Agravo, p. 110 e 111 13 Curso de Direito Processual Civil, p. 904. recurso por outro também englobaria o seu prazo? Os tribunais consideram como indício da má-fé a interposição do recurso no prazo maior, quando o prazo do recurso correto é menor que o primeiro. Deve, portanto, segundo a jurisprudência maciça, o recorrente interpor seu recurso no TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER16 e NELSON NERY JUNIOR17 manifestam-se pela dispensa da observância do prazo. A fungibilidade deve ser global, ou o princípio é aplicado integralmente, ou está descaracterizada a fungibilidade. Não há razão para excluir o prazo recursal de sua abrangência. Em suma, em razão da alteração do conceito de sentença, por força da Lei nº 11.232, de 22.12.2005, que alterou o art. 162, §1º do CPC, o critério do efeito foi substituído pelo conteúdo, aliada ao curto período de “vacatio legis” de seis meses, as dúvidas objetivas surgidas em razão deste novo conceito deverão ser resolvidas com a aplicação da fungibilidade e da instrumentalidade das formas. Os princípios não devem se restringir à teoria, mas devem ser aplicados na busca de soluções práticas, razoáveis e convenientes para a solução da lide, de maneira a viabilizar a prestação jurisdicional. 16 O Novo Regime do Agravo, p. 110 17 Código de Processo Civil Comentado, p. 816.

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