Sem generalizar de uma forma obsessiva, creio poder dizer que os jovens que nos nossos dias insistem em estudar literatura na universidade conhecem pouco, muito pouco, da literatura portuguesa dos séculos xvi e xvii, menos aonda do xvii

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana Luísa Vilela, Ana Alexandra Silva Copyright 2010 by Universidade de Évora SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas. E TUDO O MAIS RENOVA… A FUNÇÃO DAS ANTOLOGIAS LITERÁRIAS
Nestas páginas, defende-se o uso da antologia literária como livro fundamental no ensino do Português e na formação cultural dos jovens, mostrando como os seus textos curtos são essenciais na educação do leitor atento e podem fomentar o gosto pela leitura diversificada. A escola dos nossos dias, vale dizer a sociedade, tem desbaratado o espólio literário e cultural que herdou dos escritores dos séculos XVI e XVII, movida pelo preconceito de ser mais apetecível e mais útil ao aluno o texto contemporâneo do que o clássico e argumentando não terem hoje cabimento no ensino da literatura os paradigmas tradicionais da História literária, sem notar que, num universo cultural em que «tudo muda», também as orientações da história literária e da leitura do texto clássico se alteraram. A atitude crítica hoje exigida perante os textos clássicos requer uma nova concepção de antologia literária, que pode ser ainda encarada como meio para permitir ao estudante que persiste em estudar literatura num curso superior, e a quem a escola normalmente não ofereceu o conhecimento dos autores mais antigos, interrogar o texto numa relação justa. PALAVRAS-CHAVE: história da literatura; antologia; ensino da literatura; manual. 1 Universidade dos Açores, Departamento de Línguas e Literaturas Modernas (endereço: [email protected]) Permitam-me que principie contando um episódio de sala de aula. No ano passado, na primeira sessão de um seminário de mestrado que versava sobre «História e periodização da Literatura Portuguesa», dei aos estudantes, grupo de bons alunos, formados em diversas universidades e alguns a exercer o magistério, uma série de poemas, desprovidos de qualquer indicação de autor ou datação. A tarefa que lhes propus consistia em ordenarem cronologicamente esses poemas, num fio que ia dos trovadores a Jorge de Sena. Entre eles, um atraiu a atenção imediata: «Noite escura, porém clara inimiga». Abreviando agora o relato das reacções e argumentos, direi apenas que foi alvo de controvérsia, chegando a haver quem o situasse no século XX e conseguisse convencer os colegas da hipótese, invocando a feição contemporânea da sensibilidade manifestada. Foi um espanto geral, quando anunciei que tinham em mãos um poema de Francisco Rodrigues Lobo, extraído de uma novela pastoril. O autor era mais ou menos conhecido, de nome; quanto ao género novela pastoril, sabiam ter existido, mas nunca tinham lido nenhum livro A história não termina aqui. O Pastor Peregrino foi eleito obra de estudo nesse semestre, e cumpriu bem a função, tanto do ponto de vista estrito dos objectivos do programa, como pelo interesse despertado. A certa altura, o agrado, diria mesmo o entusiasmo, motivado pelas desventuras de Lereno era tal que não resisti a comentar a minha surpresa com um colega. Mandei-lhe a notícia, e na volta obtive, entre outros comentários, um «Eles nem sabem que gostam de literatura!», largado com a mesma ironia melancólica do poema de Gedeão. Achei graça à observação, mas deu-me que reflectir. E um dia, em circunstâncias muito diversas, fora do ambiente universitário, dei por mim a pensar «eles nem sabem que literatura»! É necessário ser realista. Sem generalizar de uma forma obsessiva, e admitindo sempre a existência de casos desenquadrados da regra, creio poder dizer que os jovens que nos nossos dias insistem em estudar literatura na Universidade conhecem pouco, muito pouco, da literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, menos ainda do XVIII. Quando nos encontram a nós, professores de literatura portuguesa clássica, eles, que estão já habituados a formarem eles próprios um círculo restrito, olham para nós como quem olha para uma ave rara: além de literatura, é literatura ante-diluviana! É a imagem que a escola lhes transmitiu, de uma forma mais ou menos implícita ou explícita. Os clássicos são uma herança, é preciso saber que os sonetos de Camões são muito importantes, compreender – intelectualmente – a razão desta avaliação, procurar na internet a autoridade de três ou quatro citações que a confirmem. Se possível, convirá até saber algum pormenor da vida de Camões – e assiste-se novamente à proliferação de biografias do poeta moderada ou ferozmente romanceadas, significando talvez que a comunidade substitui o conhecimento da obra pelo culto do autor consagrado. É que, na escola, o tempo urge. Lê-se um poema a correr, encontram-se os traços mais característicos, resolvem-se problemas lexicais e de interpretação. Mas não se afina a sensibilidade que permitiria distinguir a complexidade e a fundura de um soneto camoniano da cumplicidade momentânea gerada por uma letra e um ritmo rap. Ou seja, além do mais, «eles» não chegarão a aquilatar o valor da sua herança, uma vez que não possuem a chave do cofre em que gerações anteriores (a nossa, também) a encerraram. Para eles, julgamos nós, será suficiente saber que o tesouro existe e é valioso: e em vez de lhes franquearmos o acesso à obra e ao julgamento autónomo, dizemos-lhes comodamente o significado cultural dessa obra – ou, melhor dizendo, o significado que ela As heranças fazem parte da história das famílias: e com formulações várias, é comum a muitos provérbios da nossa cultura a ideia de que uma família só se conhece quando procede à partilha de bens herdados, tantas vezes com auxílio da Justiça. Que é uma situação que despoleta paixões, prova-o bem a literatura romanesca, que por hábito explora momentos típicos da vida, capazes de provocar conflitos e animar personagens: nesse campo, lembremos apenas Camilo, ou o Eça do Mandarim ou da Relíquia. E creio que não há quem não se recorde de Teodoro que procura desesperadamente livrar-se de uma herança de que não se sente legítimo proprietário, porque nela lhe pesa a morte do longínquo e desconhecido mandarim, ou do zelo com que o sobrinho de D. Patrocínio procura garantir a herança, e para agradar à tia, lhe cultiva a beatice. Mas também nos lembramos como acaba por se descuidar e é deserdado quando, anunciando a D. Patrocínio uma relíquia, lhe entrega, embrulhada em papel de seda, a camisa de dormir de uma das suas ocasionais conquistas, a camisa de Mary. Falando de literatura, uma herança é, em primeiro lugar, constituída por textos. Por isso julgo fundamental pensarmos na sua transmissão e valorização, operada pela escola e, em geral, pela sociedade. Só assim poderemos perceber a situação em que se encontra a maioria dos estudantes, mesmo estudiosos, que ainda vamos encontrando nas turmas de A história literária foi, durante cerca de um século, o alicerce estável em que se apoiava a presença da literatura nos programas de Português, desde que, em 1866, a designação assim surgiu no ensino oficial no nosso país2. E, por sua vez, encontrou até há 2 Vejam-se os capítulos IV e V de Carlos Cunha, A Construção do Discurso da História Literária na Literatura Portuguesa do Século XIX, Braga, Universidade do Minho, 2002. Sobre o papel fundamental da história literária na compreensão da literatura e no seu ensino, vejam-se a análise da situação portuguesa e as poucas décadas justificação e apoio na História geral, fosse pela inserção dos escritores em épocas histórico-culturais comuns a várias formas de expressão artística, fosse pela própria justificação dos universos ficcionais apresentados. Afinal, «l’ histoire est un roman qui a été; le roman est de l’ histoire qui aurait pu être», segundo observavam em meados do século XIX os irmãos Goncourt nas páginas do Journal. Nesta frase em que ainda se ouvem ecos da caracterização, por oposição, da História e da Poesia feita por Aristóteles, condensa-se também uma noção que veio a corroer os próprios alicerces da História e fez desabar a certeza positiva de poder recuperar a verdade do passado e dos feitos históricos, corroendo também a unidade de interpretação, a crença na construção de uma narrativa verdadeira e totalizante da vida dos povos3. «L’ histoire est un roman» – a história assenta na interpretação de testemunhos, que são, eles também, interpretação dos factos. Contraditórios por vezes, heterogéneos e Até meados do século passado, os objectivos da escola eram bem claros: tratava-se de uma instituição que tinha a seu cargo ensinar, transmitir uma herança cultural que vinha dos antepassados, e que deveria ser respeitada, acrescentada se possível. Cada época constituía um elo de uma cadeia e o tempo parecia tornar mais fortes os elos mais antigos, porque mais experimentados e resistentes. A literatura e a história ofereciam a base a um sentimento que agregava a comunidade e, neste sentido, o conhecimento do cânone literário impunha-se, a um tempo como sinal de integração patriótica nos ideais da comunidade, que propostas apresentadas por José Cardoso Bernardes na conferência de abertura das II Jornadas Científico- -Pedagógicas de Português («História literária e ensino da literatura», in Cristina Mello et al. (orgs.), II Jornadas Científico-Pedagógicas de Português, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 15-39). 3 Cf. , por exemplo, a reflexão de Henri Marrou, Do Conhecimento Histórico, Lisboa, Editorial Aster, s.d. se revia na sua juventude, e como modelo linguístico, pois nos autores eleitos espelhava-se a correcção e a elegância estilística que o aluno deveria almejar. Os autores apresentados nos sucessivos programas de ensino variavam ligeiramente, porque também os valores a cultivar não sofriam desgaste social e, por conseguinte, o cânone literário conseguia dar-lhes resposta. Ao mesmo tempo, a adopção do livro único, que difundia uma interpretação coesa da nossa cultura e da nossa história, porque segura e unificada, contribuía para consolidar a identificação da comunidade. Nesse sentido, justificava-se que os autores mais antigos gozassem de privilégios que eram negados aos contemporâneos. «Mais antigos», entenda-se, não eram os medievais, que não poderiam constituir-se como modelo de imitação linguística, aliás: além dos românticos do século XIX, era também o século XVI, o século em que, desde a historiografia romântica se via unificada a consciência da nacionalidade e um período de glória que se procurava reviver4. Foi, naturalmente, o século que não resistiu às leituras desmistificantes das alterações políticas e da pós-modernidade. Pelo contrário, o século XVII não era uma época gloriosa, era o barroco, um século de degenerescência, um século em que a grandiosidade se esvaíra. E também naturalmente, a situação alterou-se (até o calendário, proporcionando as comemorações de efemérides e centenários a isso ajudou…), a nossa sociedade fragmentada e cheia de incertezas valorizou a sensibilidade instável e o sentido social do barroco – mas se encontrou autores característicos e atitudes em que se reviu, faltaram-lhe os textos capazes de formar um corpus a apresentar aos alunos e de 4 Carlos Cunha, em O Nascimento da Literatura Portuguesa, Braga, Editora Nova Educação, 2008, centra-se sobre este tema que, aliás, tratara já no livro apontado na nota anterior. É que hoje a escola tem outras exigências, derivadas, em primeira análise, das imposições da própria sociedade. E, nessa sociedade, a história, a literatura, as humanidades, de uma forma mais geral, perderam grande parte do prestígio que detinham. Julga-se improdutiva a memória do passado, tanto mais que se sabe que as situações são irrepetíveis. Da filosofia, da sua capacidade de construir sistemas explicativos do mundo, retém-se a busca de sentidos parcelares, por vezes de tal forma assistemáticos que se poderão confundir com a interrogação poética, literária e pessoal. E torna-se um devaneio inútil a literatura, que nem sequer se ocupa do que aconteceu, mas se entretém a inventar situações, que joga com possibilidades e nem pode fazer juízos de realidade. E se à distância da imaginação se juntar a lonjura do tempo, se às pechas da literatura se somarem as da história, compreende-se que a escola procure na contemporaneidade a tábua de salvação para a educação literária, pensando que será mais apelativo, porque mais fácil e imediato, logo mais útil, o conhecimento da época em que o Mas será que se justifica a tendência de tratar os alunos como seres incapazes de se confrontarem com o desconhecido? Será obrigatório que os textos do século XVI e XVII tenham sempre uma mensagem imediata, ou, pelo menos, divertida? Não poderá haver espaço para o texto que seja colocado na perspectiva de um mundo que foi o seu? Nas barcas do Auto da Barca do Inferno teremos de embarcar forçosamente políticos e personalidades dos nossos dias? E teremos de apagar as labaredas de inferno que atemorizavam os colonos a quem o Padre António Vieira dirigia as suas exortações, para ver no Sermão de Santo António uma simples pregação de justiça terrena? A descentração é uma operação psicológica e intelectual que pode ser utilmente propiciada pela literatura. A literatura pode oferecer ao jovem momentos de confortável identificação e até de compensação: pense-se na poesia lírica quinhentista, veja-se como a análise introspectiva permite a compreensão de processos sentimentais que não são estranhos aos alunos, ou veja-se como tantos adolescentes vivem as aventuras e desventuras dos seus heróis. Mas ao mesmo tempo, a capacidade formativa da literatura não é apreciada apenas por nela nos podermos reencontrar. É a partir de situações que não lhe são familiares que o jovem pode ter a noção de alteridade, pode forjar e julgar a sua integração Ponderando bem, tão estranho à maneira de pensar e de escrever de um jovem aluno do ensino secundário é o mundo quinhentista como a poética visão de Sophia ou a de Saramago. No entanto, entende-se que na obra destes se representam uma sensibilidade e uma inteligência do mundo que merecem o esforço de aprendizagem, apesar de, forçosamente, implicarem um esforço de habituação e treino de leitura. Eliot dizia desconfiar do gosto e da formação literária de quem nunca compreendesse e apreciasse os poetas seus contemporâneos. Mas acrescentava lamentar também quem não fosse capaz de descobrir na poesia antiga o encanto da descoberta de um mundo diferente do seu. Com efeito, a diversidade dos textos torna-se essencial para a criação de hábitos de leitura autónoma. E quando falo em diversidade, refiro-me a autores, mas também a épocas. Nessa ordem de ideias, convém lembrar que um texto não fala sozinho; e, se é certo que o leitor pode dialogar com o texto, a riqueza das respostas dependerá, em larga medida, da capacidade de interrogação. Nesse sentido, a perspectiva da história literária pode ser enriquecedora. Ninguém haverá hoje em dia tão tradicionalista que defenda ainda a concepção de história literária oitocentista. Com efeito, falar hoje em história literária implica dar primazia ao texto, à obra. Nos nossos dias, a história literária já não coloca em primeiro lugar o autor, nem tão-pouco explica pelo contexto a produção literária. Nos programas, o texto ganha o relevo de primeiro plano. Mas para que este salto se traduza por um real enriquecimento do aluno, é fundamental que o ―livro de Português‖ cumpra uma função Há algumas décadas, perdeu-se a noção de livro de Português como antologia, livro de leitura. O livro de Português passou a assemelhar-se ao manual de qualquer outra disciplina: é concebido como livro de estudo, que em si encerra textos, fichas de leitura, projectos interdisciplinares, informações sobre temas relacionados com os textos, esquemas da matéria a estudar, propostas de actividades… Ensina até a ler (diga-se estudar) algumas Com a alteração, o aluno não ganhou, antes ficou a perder. Como ele, o ensino e o estudo das humanidades também sofreram. A leitura extensiva de uma obra não cumpre a função desempenhada pela leitura do texto breve e da antologia. O texto breve é essencial para a formação do leitor atento. Não permite, claro, o exercício de um direito fundamental, inalienável, que tantos escritores temem, mesmo quando dele falam com ironia, e que Perec consagrou: o direito de saltar páginas. Contudo, em idade escolar, talvez esse direito se deva exercer nos livros que se lêem por recreio. Aliás, é um direito que, penso, não cabe à escola fomentar. Cabe-lhe antes ensinar a discriminar o essencial, o secundário e o acessório. Ou seja, ensinar a interpretar. De certa forma, na aula de Português deveria ser sentida como artificial a distinção entre estudar e ler ou interpretar um texto: idealmente, são uma só operação. O livro de Português tende a ser mais um livro de Língua Portuguesa do que de Português, mesmo quando os objectivos do programa acentuam uma forte componente de cultura literária e a sua orientação é marcada por uma perspectiva humanística. E ainda assim, os manuais tendem a esquecer que uma língua se aprende pelo uso. A norma é lembrada, no que à língua materna diz respeito, na escolaridade básica. No entanto, parece que o princípio deixa de ter aplicação efectiva quando o aluno acaba de frequentar a pré-primária. Nessa altura, os autores dos manuais optam claramente pela sistematização, esquecendo que há normas que se vão abstraindo no próprio uso da língua, que há um tempo de ouvir e de imitar intuitivamente, e que é tendência natural falar de acordo com os exemplos conseguidos. E que, por conseguinte, há que proporcionar exemplos ricos, variados… e numerosos. Contudo, estranhamente, em vez de se proporcionar ao aluno um número de exemplos mais elevado, diminui-se o peso dos textos, reduzindo-se ainda mais o leque de autores e, portanto, de concretização das possibilidades expressivas do Português. Parte-se do princípio de que falamos todos tão mal a nossa língua materna que a única alternativa será a constante correcção consciente e a interiorização de esquemas que deverão ser aprendidos a partir de uma explicitação prévia. Um pouco como se de cada vez que abrimos a boca para falar devêssemos resolver uma equação linguìstica… A concluir uma análise fundamentada que faz aos actuais livros de Português, Rui Vieira de Castro expressa cruamente a ideia, tão corrente entre os pais e encarregados de educação, de que o livro de Português se dirige hoje mais ao professor do que ao aluno. E com a mesma crueza mostra como a subalternização do professor é conseguida. Mais ainda, pela análise de exemplos, põe a nu que a imagem que os autores dos manuais têm desse professor é francamente desprestigiante. O manual que a escola entrega nas mãos do aluno destina-se, de facto, a um professor mal preparado ou a um professor que não tenciona ―perder tempo‖ a preparar as aulas. E por detrás do livro adivinha-se um professor que perde de vista o alcance cultural da aula de Português5. Numa antologia, o virar de cada página permite viajar no tempo e na imaginação, e até o ter-se atribuído a cada excerto um título e uma pertença, constitui já uma sugestão de leitura. A própria variedade, que barrocamente evita a monotonia, contribui para a percepção da dimensão cultural (interdisciplinar, se se preferir) da literatura. Ao mesmo tempo, o aluno trava contacto com maneiras diferentes de escrever bem — correcta e adequada — de autores que pertencem ao número daqueles que nós, adultos de outra geração, consideramos canónicos e tentamos por isso incluir no legado a deixar. E se há obras dos séculos XVI e XVII que não pensamos adequadas a serem integralmente lidas por crianças e jovens, há passagens delas que consideramos ter o dever de dar a conhecer, pela sua qualidade estética e pela representatividade epocal: João de Barros, Francisco Rodrigues Lobo, Bernardim Ribeiro ou Sá de Miranda, por exemplo. O mesmo sucede, aliás, com um autor como Júlio Dinis, no século XIX: dificilmente diríamos a um aluno do curso geral ou do secundário para ler uma Morgadinha dos Canaviais ou umas Pupilas do Senhor Reitor; mas, culturalmente falando e vendo na literatura um ponto de convergência de conhecimentos e de expressão de uma época, só lhe fará bem, neste ano em que se celebra Darwin, divertir-se a ver como na tenda de João da Esquina se discute a teoria da evolução defendida pelo médico recém-formado. 5 Rui Vieira de Castro, «Já agora, não se pode exterminá-los? Sobre a representação dos professores em manuais escolares de Português», in Rui Vieira de Castro et al. (orgs.), Manuais Escolares. Estatuto, funções, história, Braga, Universidade do Minho, 1999, pp. Poderá haver algum exagero no quadro traçado. Todavia, dever-se-ia olhar com mais atenção para o livro de Português: no estado actual, julgo que se desperdiça um instrumento que deveria, e poderia com proveito, conciliar o ensino da língua e o entendimento do homem na diversidade das suas realizações. Nós, professores, encarregados de educação, sociedade em geral, criticamos amiúde os programas oficiais; e contudo, esquecemo-nos de que um bom professor, ou simplesmente um professor empenhado, com mais facilidade suprirá as falhas de um programa oficial do que as deficiências do manual que o aluno vai carregando dia após dia na mochila e abre quando O estudante que ao chegar à Universidade persiste na vontade de estudar literatura é normalmente um leitor por gosto. Mas o seu percurso escolar abriu-lhe um horizonte pobre no que toca aos escritores dos séculos XVI e XVII. A situação torna-se tanto mais insustentável quando é certo ser o curso universitário um patamar decisivo na formação individual. E por isso se lhe exige que concilie o inconciliável: que promova o saber especializado e que torne os seus estudantes gente culta. Ao mesmo tempo, exige-se ainda que os cursos tenham utilidade social, traduzida em empregabilidade (e não exactamente O homem culto não pode prescindir de conhecimentos factuais, de noções e dados positivos, relacionando-os em primeira instância com a área de conhecimentos em estudo. O escravo de Platão conseguiu, através do processo maiêutico, atingir a formulação do teorema de Pitágoras, mas não é concebível que fosse mais longe, comenta Gusdorf6. Só assim se torna possível organizar e valorizar o conhecimento, ou seja, ser-se culto. 6 Georges Gusdorf, Pourquoi des professeurs?, Paris, Payot, 1963. Estudar Camões, por exemplo, não se pode traduzir em conhecer apenas Camões, a obra camoniana e estudos críticos que lhe são dedicados — sob pena de retrocedermos no tempo e voltarmos ao culto tìpico da ―monomania camoniana‖ de que Carolina Michaëlis traçava a caricatura. Conhecer Camões implica também conhecer a sua época e os seus contemporâneos. No campo estritamente literário, não é apenas conhecer a poética por que se regia Camões: sem se ter lido um Bernardes, um Caminha, um Corte-Real, um D. Manuel de Portugal, ou um Garcilaso, dificilmente se poderá ter a noção do que seja a Muitas vezes, os estudantes ficam chocados quando encontram pela primeira vez os poemas que Camões imitou. Afinal, Petrarca, Garcilaso de la Vega já tinham recorrido àquela imagem, a antíteses semelhantes, aos mesmos ritmos para traduzir a perplexidade da análise introspectiva… Se não tiverem desenvolvido, já desde o ensino básico e secundário, sensibilidade poética, demorarão muito tempo a perceber a expressividade, a apropriação que cada poeta faz da herança cultural recebida. E se a par da sensibilidade poética não for trabalhada a sensibilidade linguística, também não verão a maravilha que outros encontram no retrato de Leonor. Afinal, é natural que um estudante não consiga perceber bem com que Neste aspecto, as antologias literárias da época clássica continuam a manifestar a sua utilidade para o estudante universitário, a quem um semestre lectivo não poderá proporcionar o encontro directo com alguns autores importantes de que ouvirá falar. A título de exemplo, pensemos novamente em Camões lírico. Não são muitas as edições de poetas seus contemporâneos que, respondendo a exigências de rigor ecdótico, proporcionem uma leitura agradável, principalmente pela falta de anotações que facilitem a compreensão do texto. Os volumes da popular colecção ―Clássicos‖, da Sá da Costa, que geralmente esclareciam de forma breve as dúvidas lexicais, legítimas no leitor dos nossos dias, vincam demais que foram fruto de uma época já distante em termos de exigência crítica, além de se terem tornado raros. Actualmente, com introduções e notas esclarecedoras, Diogo Bernardes viu reeditadas as Várias Rimas ao Bom Jesus por Maria Lucília Pires, enquanto o conjunto da sua obra foi editado por J. Cândido Martins (O Lima), Luís Alexandre da Silva Pereira (Rimas Várias, Flores do Lima) e João Amadeu O. C. da Silva (Várias Rimas o Bom Jesus). António Ferreira encontrou editor em T. F. Earle e António Cirurgião subtraiu Duarte Dias ao rol dos esquecidos. Hélio Alves optou por organizar uma antologia de Corte-Real, defendendo assim o autor, o que não acontece com Pero de Andrade Caminha, que tem a sua copiosa obra estudada e publicada por Vanda Anastácio. A poesia profana de D. Manuel de Portugal conhece-se pela edição de Sá Fardilha, Maria Luísa Linhares de Deus discute o cânone de Fernão Rodrigues Lobo Soropita, que desde Camilo não via letra de forma, mas nem um nem outro esclarecem passos de interpretação mais difícil. As antologias podem ainda permitir ao estudante o delinear a época: vejam-se os Poetas do Período Maneirista, de Isabel Almeida, que curiosamente não inclui Camões, mas apresenta óptimas sugestões de leitura, ou a edição da Antologia de Poesia Portuguesa. Século XVI: Camões entre seus contemporâneos de Sheila Moura Hue. Também os cancioneiros de mão poderiam cumprir essa função de florilégios, tanto mais que foram organizados por alguém que filtrou e leu a sua época; contudo, nos nossos dias, encontram-se quase reservados aos estudiosos, porque raramente publicados em edições de Entende-se facilmente que a concepção de uma antologia se associe ao entendimento da historia literária como fio ordenador. Mas a concepção de história literária mudou desde o tempo em que a antologia era um livro indispensável ao conhecimento literário e à expansão dos autores e textos canónicos. Mudaram também, necessariamente, os vínculos que poderão ligar um livro de história literária e a antologia literária que ilustre Já não é a orientação em que José Maria da Costa e Silva ilustrava o Ensaio biographico-critico sobre os melhores poetas portugueses (1850-55) com os textos que confirmavam a valoração do juízo estético e crítico formulado, numa atitude presente também na sempre útil História da Literatura Portuguesa de Mendes dos Remédios. A estes livros em que às páginas de história se associam páginas antológicas exige-se agora a primazia do texto literário e uma atitude de indagação, na consciência de que a nossa leitura dos textos do século XVI e XVII representa o encontro de duas épocas. É uma orientação que está presente, por exemplo, na História e Antologia da Literatura Portuguesa, publicada sob orientação de Isabel Allegro de Magalhães, em que a história é feita por uma Queremos com isto dizer que se pode fazer um curso universitário através de simples antologias? Ou que uma antologia «resolve o problema» dos alunos? Não, de maneira nenhuma. Há no ensino universitário um sentido de aprofundamento e rigor que não é compatível com a falsa sensação de se abarcar o mundo. Queremos dizer, isso sim, que, na formação do interesse pela leitura, e por consequência, na educação cultural e estética, a antologia literária desempenha um papel insubstituível. Livro de leitura na aula de Português, torna-se livro de apoio de gente culta e alarga certamente o horizonte de quem o lê, desde que o seu organizador tenha em conta que no mundo tudo muda, inclusivamente os trilhos dos estudos literários. E que tenha ao mesmo tempo a noção exacta de que uma antologia deve proporcionar variedade: autores, temas, épocas. Nesse sentido, também é importante que a escola tome consciência de estar a desbaratar a nossa herança cultural literária em particular, a troco de uma desmesurada sobrevalorização do contemporâneo. Divulgar as flores dos autores clássicos pode ser um processo de nos recusarmos a aceitar elegiacamente que isto seja ―sem cura‖. Para que não tenhamos de chorar, como aquele Teodoro que evoquei no início desta comunicação, a troca dos embrulhos e não entreguemos aos vindouros, em vez da relíquia preciosa, a

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